Leão 14, sucessor de Francisco, e desafios do tamanho do mundo
- Pablo Pereira
- 13 de mai.
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Atualizado: há 3 dias
Quem conhece a história do pensamento católico, seja historiador, agnóstico, ateu, ou simplesmente curioso, sabe que houve um homem, Aurélio Agostinho de Hipona, o Santo Agostinho, nascido no século 300 depois de Cristo, que é um importante pensador dentro da Igreja Católica. Ele é visto, entre outras coisas, como o "pai dos padres", os disseminadores e gestores das ideias e das coisas do catolicismo junto aos fiéis nas paróquias pelo mundo. Esse Agostinho, que inventou essa maneira de espalhar os ideais do catolicismo, é o criador do movimento dos agostinianos, o grupo pastoral do qual o papa Leão 14 se diz seguidor.
Pois esse Agostinho, influenciado pelos gregos Platão e Aristóteles, teve uma vida (resumidamente) com duas fases distintas. A primeira, de um contestador, homem educado, sem dificuldades econômicas, com hábitos e aspirações plenamente humanas, como dividir a vida com uma mulher, casar, ter filhos e até, em seus conflitos de jovem pensante, ser um adepto de seitas maniqueístas - como, de fato, o foi. Isso tudo aconteceu até a interferência de um amigo conterrâneo chamado Alípio de Tagaste, também canonizado (mais de mil anos depois como Santo Alípio) -, aliás, lembrado no Quincas Borba, o humanita, de Machado de Assis, no raciocício do "capitalista" Rubião ao presenciar um enforcamento de um escravo - "não fecharia os olhos, como fez certo Alypio deante do expectaculo das feras?" (Ah, como é bom ler Machado!). As Confissões, de Agostinho, certamente, foram leitura de Machado*.
Pois, então, Agostinho, que tem o amigo citado no livro da guerra das batatas, mudou da água para o vinho. O mundano cidadão romano, nascido na África, onde hoje é a Argélia, sofreu radical alteração na forma de encarar a razão, os dilemas humanos e de se relacionar com religião. Nessa segunda fase, Agostinho converteu-se ao catolicismo, mexeu com dogmas teológicos e tornou-se um crítico social adepto da caridade. Era filho de família com posse de terras, teve cultura dominante, mas preferiu viver com comunidades de gente mais necessitada. Foi um eremita preocupado com a caridade, plantou nos católicos as sementes da aceitação de princípios científicos sobre as origens humanas e fez-se referência, ao logo dos séculos, virando o que chamam de um "doutor da Igreja".
Há um mar de coisas a saber sobre o homem que virou santo católico. Mas temos uma coisa forte que chama muito a atenção, particularmente, em Agostinho. Pelas circunstâncias históricas de sua época, cheia de conflitos entre povos, ele defendia um princípio que quase dois mil anos depois ainda é um assustador prego no sapato de líderes mundiais. Não era um adepto da não-violência, tipo Gandhi ( 1869-1948). Agostinho admitia a guerra, a "guerra justa" (jus in bellum), ou seja, aquela reação armada que ocorre para a defesa da paz. Atualmente, é regra descrita até nos manuais de orientação humanitária da Cruz Vermelha Internacional e das Nações Unidas (ONU), traduzida como direito ao uso da força (jus ad bellum).
Nos dias atuais, esse pode ser um conceito de difícil entendimento, mas já esteve incrustrado, por exemplo, na aliança mundial formada nos anos 1940, quando americanos, europeus e russos se aliaram para derrotar os alemães nazistas e os italianos fascistas. O avanço nazi/fascista era uma ameaça não só aos judeus, alvos do inaceitável racismo praticado pelos animais liderados por Hitler e Mussolini. Tratava-se de uma aliança militar para livrar o mundo "democrático" do autoritarismo contido naquele pensamento monstruoso de extrema direita.
Aliás, a libertação mundial daquela chaga, ocorrida em 1945, com o fim da Segunda Guerra, tem seu Dia da Vitória, que é 8 de maio, quando os aliados russos, tropas comunistas, finalmente entraram em Berlim e derrubaram Hitler. Dias antes, ainda em abril, Mussolini já havia sido preso e fuzilado por militantes, os partisans, quando tentava uma fuga da Itália pela região de Milão, à beira do lago de Como. O Dia da Vitória é comemorado todos os anos por governantes anti-nazistas. Na semana passada, completaram-se os 80 anos daquela guerra de libertação. O presidente brasileiro, Lula, estava entre os aliados que comemoraram a vitória sobre a barbárie hitlerista.
Vestido de papa num mundo que volta a viver tempos de guerras e ameaças internacionais, como o horror do nazismo, com certeza era neste quadro escuro que pensava o agostiniano Leão 14 ao fazer seu discurso pela paz na Santa Sé, na semana passada. Norte-americano, cidadão do Peru - viveu anos em Chiclayo, norte de Lima, acalmando pobres e índios segregados-, ele também já fez questão de defender a liberdade de imprensa e condenar arbitrariedades contra trabalhadores do jornalismo. Uma tomada de posição importante para a liberdade - e para o papa.
Não terá vida fácil, o seguidor de Santo Agostinho e de Leão 13, o papa (1878-1903) que conviveu com as turbulências nas greves de trabalhores de Chicago, no início dos anos 1900. Lembremos que esses são fatos da raiz do que hoje é o Primeiro de Maio, o Dia Internacional do Trabalhador - pelo menos fora dos EUA.
Mas lembremos também que Leão 13 defendia a propriedade privada, era contra greves, condenava o socialismo e dizia que a solução dos conflitos de classes, como está na sua encíclica Rerum Novarum (1891), devia ser remediado pelo conceito religioso da conciliação a partir da esmola dos ricos aos pobres. São argumentos que, atualmente, o classificam como um papa de direita.
Católicos, ateus ou agnósticos, todos, sabem que os desafios mundiais atuais repetem os históricos dramas sociais da relação capital e trabalho, com guerras, disputas de poder, e o extermínio de contrários, o que exige, mas do que nunca, iluminação de líderes e atos de gente que veja além dos horizontes da religião.
*(Post atualizado com a inclusão da fonte de leituras de Machado de Assis: Confissões, de Santo Agostinho)

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